O Rio do Desejo

O querer orgânico nosso de todo dia

Por Fabricio Duque

O Rio do Desejo

O realizador Sergio Machado (de “Tudo Que Aprendemos Juntos“, “A Luta do Século“, “Quincas Berro D’Água“, “Cidade Baixa”, “Irmãos Freitas“),  talvez entenda melhor a construção do tempo narrativo em seus filmes pelo fato de ser um baiano típico de Salvador. Talvez por ter vivido desde cedo entre cidades baixas e altas. Ou por saber “Onde a Terra Acaba”, sua primeira obra cinematográfica. Se antes, a Bahia foi palco, agora, em “O Rio do Desejo”, a geografia acontece no Amazonas, no vilarejo de Itacoatiara, filme este que corrobora sua característica principal que é a de contar histórias íntimas pela naturalidade do meio, evocando aquele tempo de invisibilidade real. Sergio consegue criar no espectador a sensação por imergi-lo nas mais básicas questões universais do ser humano: amor e desejo, sentimentos que já dizia Nelson Rodrigues “nunca acaba bem”, tudo integrando a parte técnica, em que a estilizada e metafórica fotografia poética e orgânica (de Adrian Teijido, ora noturna à luz de velas; ora de sol se pondo – que filma o corpo suado pelo calor “desse lugar” e o sexo em close; e ora pela luz vermelha de uma sala de revelação de uma imagem – sonho ou resposta?), mixa-se com o som do redor. Talvez a mestria esteja na ambientação metafísica não apelativa e certeira, principalmente pela escolha da trilha-sonora (com a participação especial de Felipe Cordero), como a de Dona Odete e suas “propostas indecentes”. 

“O Rio do Desejo” é inspirado no conto “O Adeus do Comandante”, que está no livro “A Cidade Ilhada” (o sexto dos catorze textos) do “maior escritor vivo” (pelas palavras do próprio diretor), o amazonense Milton Hatoum, também professor e que aqui co-roteirizou com Maria Camargo e George Walker Torres, além de Sergio, por trazer à narrativa o “subtexto”, a sinestesia das expressões e a linguagem naturalista com suas transmissões receptivas dos costumes populares da região (talvez pela preparação de elenco de Fátima Toledo, famosa pela radicalização do Método), como o “cheiro de perfume falsificado é o mesmo”. O filme quer a visceralidade emocional ao expor desejos versus pesadelos versus os outros, entre chalana no rio; entre peixes na mesa; “atirados” flertes policiais (e verdades: “a polícia limpa num dia, no outro já tá sujo de novo”); provocações ao perigo; e a selvagem tensão sexual dos impossibilitados (três irmãos diferentes – que vença o melhor: quem consegue lidar com segredos?). Há um que de nostalgia atemporal e analógica, que remete à cinematografia do diretor maranhense Frederico Machado, em especial pela cena dos dois no rio tomando banho. 

Sim, logicamente, e quase uma consequência esperada, muito por ser tão intimista, “O Rio do Desejo” acorda gatilhos comuns, talvez porque no filme a história precisou ser expandida do conto, escrita com o tom de poesia inocente que encontra o fogo desnorteante do desejo. Assim, podemos pensar que certas reviravoltas são simplistas e/ou facilitadas. Pode ser. Mas isso não tira nem um pouco o mérito do que assistimos, que são desejos gerados por possibilidades limitadas devido ao meio. São brechas que criam novas percepções. Distâncias que desviam a culpa e os olhares julgadores (Por que é tão comum os encontros atrás da Igreja em lugarejos  mais rurais?). Imagine se esta trama se passasse na cidade grande. Ou mesmo na baixa ou alta. Pois é. Tudo seria diferente. Talvez nós não estamos mais acostumados à ingenuidade do amor e dos meandros dos quereres humanos, que instigam o mais azulado e ardente dos sangues. Em vidas assim, a vingança é quase um final obrigatório. Uma decisão tomada no calor da emoção. Honra ferida? 

“O Rio do Desejo” pode também ser traduzida como uma experiência de literatura em tela. De um lados, as palavras. Do outro, as imagens. A parceria funcionou. Sergio levou às telas mais uma obra de Milton, descredenciando as próprias palavras de seu escritor, que sempre disse que seus livros eram complicados demais para serem adaptados. Já o realizador conseguiu equilibrar os tempos, construindo aqui um equilibrado tempo editado entre a espera e a ação, para assim se aprofundar nas idiossincrasias comportamentais dos seres enquanto indivíduos existentes em sociedades comunitárias, cada uma trazendo na bagagem o mais básico, genuíno e intrínseco sentimento, o que realmente vem escondido na alma. Aqui não há o maniqueísmo e sim a estética subjetiva do desejo, que nos transforma em co-dependentes, em uma retroalimentação de impulsos e deixas de outrem. “O Rio do Desejo” é o próprio fluxo do querer de todo e qualquer um de nós. 

4 Nota do Crítico 5 1

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